Declaração de Istambul

Preâmbulo

A transplantação de órgãos, um dos milagres da medicina do século XX, prolongou e melhorou as vidas de centenas de milhares de doentes em todo o mundo. Os diversos avanços científicos e clínicos fantásticos, realizados por profissionais de saúde dedicados, bem como os inúmeros actos de generosidade por parte de dadores de órgãos e das respectivas famílias, fizeram da transplantação não só uma terapêutica que salva vidas, como também um símbolo brilhante da solidariedade humana. Contudo, estes feitos têm sido denegridos por inúmeros relatos de tráfico de seres humanos que são utilizados como fonte de órgãos e de turistas-doentes de países ricos que viajam para o estrangeiro com o objectivo de comprarem órgãos a pessoas pobres. Em 2004, a Organização Mundial da Saúde instou os Estados-Membros a “tomarem medidas no sentido de proteger os grupos mais pobres e vulneráveis contra o turismo de transplantação e a venda de tecidos e órgãos, prestando atenção ao problema mais vasto do tráfico internacional de tecidos e órgãos humanos” (1).

No sentido de abordar os problemas urgentes e crescentes da venda de órgãos, do turismo de transplantação e do tráfico de dadores de órgãos no contexto da falta global de órgãos, reuniu-se em Istambul, entre 30 de Abril e 2 de Maio de 2008, uma Cimeira de mais de 150 representantes de organismos científicos e médicos de todo o mundo, membros do governo, cientistas sociais e especialistas em questões éticas. Os trabalhos de preparação da cimeira foram realizados por um Comité Director convocado pela The Transplantation Society (TTS) e pela International Society of Nephrology (ISN) no Dubai, em Dezembro de 2007. O projecto de declaração do Comité foi amplamente divulgado e, posteriormente, revisto à luz das observações recebidas. Na Cimeira, o projecto revisto foi analisado por grupos de trabalho e finalizado durante as deliberações plenárias.

A presente Declaração representa o consenso dos participantes na Cimeira. Todos os países necessitam de um enquadramento jurídico e profissional para reger as actividades de dádiva e de transplante de órgãos, bem como de um sistema de supervisão regulamentar transparente que assegure a segurança de dadores e de receptores e a aplicação de normas e proibições de práticas não éticas.

As práticas não éticas são, em parte, uma consequência indesejável da falta global de órgãos para transplante. Assim sendo, cada país deverá esforçar-se tanto para assegurar que sejam postos em prática programas para evitar a falência orgânica, como para proporcionar órgãos que satisfaçam as necessidades de transplantação dos respectivos residentes a partir de dadores da sua própria população ou por intermédio de cooperação regional. O potencial terapêutico da dádiva de órgãos de dadores mortos deverá ser maximizado, não só no que se refere a rins, mas também a outros órgãos adequados às necessidades de transplantação de cada país. Os esforços no sentido de iniciar ou melhorar a transplantação a partir de dadores mortos são essenciais para minimizar o ónus sobre os dadores vivos. Os programas educativos são úteis para abordar os obstáculos, os equívocos e a desconfiança que actualmente impedem o desenvolvimento suficiente da transplantação a partir de dadores mortos; o êxito dos programas de transplantação depende igualmente da existência da infra-estrutura relevante no sistema de saúde.

O acesso a cuidados de saúde é um direito humano embora, com frequência, não seja uma realidade. A prestação de cuidados a dadores vivos antes, durante e após a cirurgia – tal como descrito nos relatórios dos fóruns internacionais organizados pela TTS em Amesterdão e Vancouver (2-4) – não é menos essencial do que os cuidados prestados ao receptor do transplante. Um resultado positivo para um receptor nunca pode justificar que se cause mal ou prejudique um dador vivo; pelo contrário, para que um transplante com um dador vivo seja considerado um êxito, é necessário que tanto o receptor como o dador tenham estado bem.

A presente Declaração assenta nos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem (5). A vasta representatividade dos participantes na Cimeira de Istambul reflecte a importância da colaboração internacional e do consenso global no sentido de melhorar as práticas de dádiva e de transplante. A Declaração será apresentada para análise a organizações profissionais pertinentes e às autoridades de saúde de todos os países. O legado da transplantação não pode ser constituído pelas vítimas empobrecidas do tráfego de órgãos e do turismo de transplantação, mas antes por uma celebração da dádiva da saúde por uma pessoa a outra.

Definições

O tráfico de órgãos consiste no recrutamento, transporte, transferência, refúgio ou recepção de pessoas vivas ou mortas ou dos respectivos órgãos por intermédio de ameaça ou utilização da força ou outra forma de coacção, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou recepção por terceiros de pagamentos ou benefícios no sentido de conseguir a transferência de controlo sobre o potencial dador, para fins de exploração através da remoção de órgãos para transplante (6).

O comercialismo dos transplantes é uma política ou prática segundo a qual um órgão é tratado como uma mercadoria, nomeadamente sendo comprado, vendido ou utilizado para obtenção de ganhos materiais.

As viagens para fins de transplantação são a circulação de órgãos, dadores, receptores ou profissionais do sector da transplantação através de fronteiras jurisdicionais para fins de transplantação. As viagens para fins de transplantação tornam-se turismo de transplantação se envolverem o tráfico de órgãos e/ou o comercialismo dos transplantes ou se os recursos (órgãos, profissionais e centros de transplantação) dedicados à realização de transplantes a doentes oriundos de fora de um determinado país puserem em causa a capacidade desse país de prestar serviços de transplantação à respectiva população.

Princípios   

1. Os governos nacionais, trabalhando em colaboração com organizações internacionais e não governamentais, deverão desenvolver e implementar programas abrangentes para a detecção, a prevenção e o tratamento da falência orgânica, o que incluirá:

a. a promoção de investigação clínica e científica básica;

b. programas eficazes, com base em directrizes internacionais, para tratar e cuidar de doentes com doenças em fase terminal, tais como programas de diálise para doentes renais, no sentido de minimizar a morbilidade e a mortalidade, juntamente com programas de transplantação para tais doenças;

c. o transplante de órgãos como tratamento preferencial para a falência orgânica no caso de receptores adequados do ponto de vista médico.

2. Cada país ou jurisdição deverá desenvolver e implementar legislação no sentido de reger a colheita de órgãos de dadores mortos e vivos e a prática dos transplantes em consonância com as normas internacionais.

a. Dever-se-ão desenvolver e implementar políticas e procedimentos com o objectivo de maximizar o número de órgãos disponíveis para transplante, em consonância com os presentes princípios;

b. A prática da dádiva e do transplante requer supervisão e responsabilização por parte das autoridades de saúde de cada país, no sentido de assegurar a transparência e a segurança;

c. A supervisão exige a existência de um registo nacional ou regional para transplantes a partir de dadores mortos e vivos;

d. Como componentes essenciais de programas eficazes contam-se a educação e a sensibilização do público, a educação e a formação de profissionais de saúde e a definição de responsabilidades para todos os intervenientes no sistema nacional de dádiva e transplante de órgãos.

3. Os órgãos para transplante devem ser equitativamente atribuídos no seio de países ou jurisdições a receptores adequados, sem que o género, a etnia, a religião ou o estatuto social ou financeiro sejam tidos em consideração.

a. As considerações financeiras ou os ganhos materiais de qualquer interveniente não devem influenciar a aplicação das regras de atribuição pertinentes.

4. O objectivo principal das políticas e dos programas de transplantação deverá ser a existência de cuidados médicos de curto e longo prazo excelentes, no sentido de promover a saúde tanto de dadores como de receptores.

a. As considerações financeiras ou os ganhos materiais de qualquer um dos intervenientes não deverão sobrepor-se à consideração principal pela saúde e pelo bem-estar de dadores e receptores.

5. As jurisdições, os países e as regiões deverão esforçar-se por alcançar a auto-suficiência em matéria de dádiva de órgãos, proporcionando um número suficiente de órgãos para os residentes que deles necessitem a partir do próprio país ou por intermédio da cooperação regional.

a. A colaboração entre países não é incompatível com a auto-suficiência nacional, desde que a colaboração proteja as pessoas vulneráveis, promova a igualdade entre populações de dadores e de receptores e não viole os presentes princípios;

b. O tratamento de doentes de fora do país ou da jurisdição só é aceitável se não puser em causa a capacidade do país de prestar serviços de transplantação à respectiva população.

6. O tráfico de órgãos e o turismo de transplantação violam os princípios da equidade, da justiça e do respeito pela dignidade humana, pelo que devem ser proibidos. Uma vez que o comercialismo dos transplantes tem como alvo dadores empobrecidos ou vulneráveis por qualquer outro motivo, conduz inexoravelmente à iniquidade e à injustiça, devendo ser proibido. Na sua Resolução 44.25, a Assembleia Mundial da Saúde instou os países a prevenirem a compra e venda de órgãos humanos para fins de transplantação.

a. As proibições destas práticas deverão incluir uma proibição a todos os tipos de publicidade (inclusive em suportes electrónicos e impressos), solicitação ou intermediação para fins de comercialismo dos transplantes, tráfico de órgãos ou turismo de transplantação.

b. Tais proibições deverão igualmente incluir penalizações para actos — como o rastreio médico de dadores ou órgãos ou o transplante de órgãos — que auxiliem, incentivem ou utilizem os produtos do tráfico de órgãos ou do turismo de transplantação.

c. As práticas que induzem pessoas ou grupos vulneráveis (tais como pessoas analfabetas ou pobres, imigrantes sem documentos, prisioneiros e refugiados políticos ou económicos) a tornar-se dadores em vida são incompatíveis com o objectivo de combater o tráfico de órgãos, o turismo de transplantação e o comercialismo dos transplantes.

Propostas

Em consonância com os presentes princípios, os participantes na Cimeira de Istambul sugerem as estratégias seguidamente indicadas para aumentar o conjunto de dadores e para evitar o tráfico de órgãos, o comercialismo dos transplantes e o turismo de transplantação, bem como para incentivar programas de transplantação legítimos que salvem vidas:

Para responder à necessidade de aumentar as dádivas post mortem:

1. Os governos, em colaboração com as instituições de cuidados de saúde, os profissionais do sector e as organizações não governamentais, deverão tomar medidas adequadas no sentido de aumentar a dádiva de órgãos post mortem. Devem ser tomadas medidas tendentes a eliminar os obstáculos e a falta de incentivos à dádiva de órgãos post mortem.

2. Nos países onde não haja um programa já estabelecido de dádiva ou transplante de órgãos de cadáveres, deverá ser aprovada legislação nacional que dê início à dádiva de órgãos de cadáveres e que crie infra-estruturas de transplantação, para que se concretize o potencial dos dadores mortos de cada país.

3. Em todos os países onde já tenha sido iniciada a dádiva de órgãos post mortem, o potencial terapêutico da dádiva e do transplante de órgãos de cadáveres deverá ser maximizado.

4. Os países com programas de transplantação de dadores mortos bem estabelecidos são incentivados a partilhar informações, conhecimentos e tecnologia com os países que procurem aperfeiçoar os seus esforços de dádiva de órgãos.

Para assegurar a protecção e a segurança de dadores vivos e o reconhecimento adequado da sua acção heróica, combatendo, em simultâneo, o turismo de transplantação, o tráfico de órgãos e o comercialismo dos transplantes:

1. O acto da dádiva deve ser considerado heróico e honrado como tal pelos representantes do governo e das organizações da sociedade civil.

2. A determinação da adequação médica e psicossocial do dador vivo deve ser guiada pelas recomendações dos Fóruns de Amesterdão e Vancouver (2-4).

a. Os mecanismos de consentimento informado devem incluir disposições para avaliar a compreensão por parte do dador, incluindo a avaliação do impacto psicológico do processo;

b. Todos os dadores deverão ser submetidos a uma avaliação psicológica realizada por profissionais de saúde mental durante o rastreio.

3. A prestação de cuidados a dadores de órgãos, incluindo os que foram vítimas de tráfico de órgãos, comercialismo dos transplantes e turismo de transplantação, é uma responsabilidade crítica de todas as jurisdições que condenaram a realização de transplantes de órgãos mediante a utilização de tais práticas.

4. Os sistemas e estruturas deverão assegurar a normalização, a transparência e a responsabilização pelo apoio à dádiva.

a. Deverão ser criados mecanismos que visem a transparência do processo e o seu acompanhamento;

b. Dever-se-á obter o consentimento informado, tanto para o processo de dádiva como para o processo de acompanhamento.

5. A prestação de cuidados inclui cuidados médicos e psicossociais na altura da dádiva e para eventuais consequências a curto e longo prazo relacionadas com a dádiva de órgãos.

a. Nas jurisdições e nos países que carecem de um seguro de saúde universal, o fornecimento de um seguro de incapacidade, vida e saúde relacionado com a dádiva constitui um requisito necessário à prestação de cuidados ao dador;

b. Nas jurisdições que dispõem de um seguro de saúde universal, os serviços governamentais deverão assegurar que os dadores tenham acesso a cuidados médicos adequados relativamente à dádiva;

c. A cobertura por seguros de saúde e/ou de vida e as oportunidades de emprego das pessoas que doam órgãos não deverão ser comprometidas;

d. Dever-se-á proporcionar a todos os dadores a prestação de serviços psicossociais como componente regular do acompanhamento;

e. Em caso de falência orgânica do dador, este deverá receber:

i. cuidados médicos de apoio, incluindo diálise para os doentes com insuficiência renal; e

ii. prioridade no acesso a transplantes, sendo integrados nas regras de atribuição existentes, na medida em que se apliquem à transplantação de órgãos em vida ou post mortem.

6. O reembolso abrangente dos custos efectivos e documentados da dádiva de um órgão não constitui um pagamento por esse órgão, fazendo antes parte dos custos legítimos do tratamento do receptor.

a. Tal reembolso de custos seria normalmente feito pela parte responsável pelos custos de tratamento do receptor do transplante (como, por exemplo, o ministério de saúde de um determinado governo ou uma companhia responsável pelo seguro de saúde);

b. Os custos e as despesas relevantes deverão ser calculados e administrados utilizando metodologias transparentes, em consonância com as normas nacionais;

c. O reembolso dos custos aprovados deverá ser feito directamente à parte que presta o serviço (como, por exemplo, o hospital que prestou os cuidados médicos ao dador);

d. O reembolso da perda de rendimentos e das despesas feitas pessoalmente pelo dador deverá ser realizado pela agência que trata do transplante, em vez de ser pago directamente pelo receptor ao dador.

7. As despesas legítimas que podem ser reembolsadas sempre que sejam documentadas são:

a. o custo de quaisquer avaliações médicas e psicológicas de potenciais dadores vivos que sejam excluídos do processo de dádiva (por exemplo, por serem detectados problemas médicos ou imunológicos durante o processo de avaliação);

b. os custos suportados durante a preparação e a realização das fases pré, peri e pós-operatória do processo de dádiva (por exemplo, chamadas telefónicas de longa distância, despesas de deslocação, alojamento e subsistência);

c. as despesas médicas realizadas para os cuidados prestados ao dador após a alta médica;

d. a perda de rendimentos em consequência da dádiva (em conformidade com as normas nacionais).

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